quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Veneno da Lua




A brisa suave que entra pela porta da cozinha convida você a entrar no cômodo perfumado. Você percebe que há luz entrando por todas as janelas e, também, pela porta. Não é uma luz direta, ela vem do lado de fora da casa. Apoiada no balcão próximo à janela maior, você se inclina e depois fecha os olhos.

A brisa se intensifica e você sente a presença. Ela se esgueira por entre os móveis, cadeira, mesa, porta, panelas e colheres penduradas. E não emite som algum. Seus movimentos fazem um jogo de sombra e luz por todos os lados e você sente uma certa tontura.

Ela pede para você se sentar. Lenta, mas precisamente, ela corta pedaços, espalha temperos, derrama líquidos sobre o balcão. O cheiro adocicado do sangue se mistura ao forte aroma de alho e o perfume pungente da canela: tudo isso faz você pensar no mar, nas árvores escuras que rodeiam a casa e na sensação de ficar descalça em terreno desconhecido. Sem se dar conta, você está falando tudo isso em voz alta, as mãos se movendo ao longo do corpo nervosamente. Seus olhos vão dela para si mesma, e para ela outra vez.

Ela joga a carne sobre o óleo quente e sua pele parece levantar bolhas e o calor é quase insuportável. À medida que os líquidos se desprendem, sua voz se levanta, seu corpo se move devagar, irriquieto, febril.

De repente, ela começa a falar enquanto trabalha. A voz é baixa, porém firme. - As pessoas pensam demais, racionalizam o tempo todo. Eu estou farta de todos olharem para mim e verem apenas um corpo branco, cheio e repleto e influente e capaz de mover mares e sentimentos, porque isso tudo nada mais é do que medo. Medo de fazer alguma coisa diferente, de dar voz ao que está lá dentro, de ir contra a moral e os bons costumes... argh!

Ela dá uma gargalhada, rouca e deliciosamente desdenhosa, enquanto mistura cerejas e vinho e especiarias ao que está fazendo. As mãos estão sujas, ela lambe os dedos, lambe a colher de pau, sorri, volta a colher para dentro da panela, retira um pouco do líquido e se vira para você. - Abra a boca e feche os olhos, ela diz, a voz de uma menina. O caldo parece ter o gosto de todas as coisas que você sente, todas as coisas que você nega, que você esconde de todos. É uma mistura de desejos com a certeza de que não se pode esconder nada, que não se pode fingir algo que não é. E você ri.

A carne é cortada em finos pedaços, o suco avermelhado se desprende como néctar das fibras cor-de-rosa quase cruas. Ela junta tudo dentro da panela, os perfumes densos se aglomerando e produzindo uma névoa adocicada e inebriante de gengibre, cravo e pimenta.

Ela coloca a panela no centro da mesa, junto a uma travessa cheia de fatias de pão. Não há pratos, talheres, nem copos, tampouco guardanapos. Ela diz que não precisa de nada disso. E você entende.

E molha um pedaço de pão no molho, a outra mão entrando na panela para pegar um pedaço de carne. O molho escorre pelos braços, você lambe, ri e continua comendo. A cada mordida, os gemidos se espalham pela cozinha, é como saborear a pele de alguém, o prazer aumentando enquanto você mastiga.

- Isso, diz ela. Assim, assim que eu gosto.

Cada vez que seu braço desce até a panela, é quase com um ritual proibido, de olhar pela fresta da porta e ver a nudez de outro, é como roçar os braços, os pés, as mãos, o corpo todo em pedaços de carne macia e quente e viva. O líquido que escorre da saliva em um beijo e você já não consegue esconder o desejo e um grito rouco escapa de sua garganta, a língua lambendo os beiços, os dedos, as mãos e o braço. Seu olhar se espalha ao redor, lânguido, e você se sente um bicho, uma coisa selvagem que se libertou e ri, e ri mais e gargalha, o corpo se liquefazendo em cerejas e vinho e canela e libido e todas as coisas que sempre pareceram proibidas e a loucura se aproxima e é como o êxtase compartilhado, e dói e sangra e é tudo ao mesmo tempo. E não há como parar, você come, geme, goza e continua comendo até que todos os seus sentidos estejam libertos, refeitos, desfeitos. Tudo o que sobra é uma panela vazia, um dedo de vinho na garrafa, a toalha escorregando para fora da mesa.

Algum tempo depois, ela beija seu rosto e vai embora. Você vai até a porta - a roupa respingada de molho, as mãos melecadas, o rosto tingido pela carne - e uiva para ela como uma saudação.

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